quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Fernando na terra de Felipe

Quase dois anos depois de escrito, encontrei um artigo que uma agência de notícias árabe fez comigo no começo de 2007. É interessante reler essas histórias e relembrar de alguns momentos que marcaram a sua vida...

Fernando na terra de Felipe

Débora Rubin - ANSA - [13/06/2007]

O jornalista carioca Fernando Kallás, de 28 anos, queria passar uma temporada fora do Brasil, estudando. Mas não queria os destinos óbvios dos brasileiros, como Estados Unidos e Inglaterra. Escolheu a terra de seu avô Felipe: o Líbano. Nos dois anos que passou lá, conheceu a fundo o país, os libaneses e a si mesmo.


São Paulo – Fernando tinha 25 anos e um parco vocabulário em árabe quando chegou em Beirute, em 2004. Foi estudar ciências políticas na Universidade de Notre Dame. Sua escolha pelo Líbano tinha um quê de profissional e algo mais de pessoal. Como jornalista, achava interessante ter a experiência de viver no Oriente Médio, palco de tantas notícias. Por outro lado, queria conhecer o país mais lindo do mundo, segundo as memórias de seu avô, Felipe Elias Kallás, que chegou ao Brasil quando tinha 20 anos, vindo de uma cidadezinha do Vale do Bekah. Aqui, ele se casou com uma prima, também libanesa, que tinha vindo quando bebê.

“Meu avô era um típico imigrante libanês, desses que ficam idealizando a terra que deixou para trás”, diz Fernando. Com Felipe, ele aprendeu a cantar algumas canções em árabe e a falar uma ou outra palavra. Foi para o Líbano em busca da terra do avô. Em seu blog, algumas semanas após chegar em Beirute, fez a seguinte constatação: “Vim para o Líbano para estudar, fazer meu mestrado, me especializar em religião, história e política do Oriente Médio. Mas por trás disso tudo sempre houve um algo mais...nunca soube explicar até hoje o que era esse sentimento que herdei do meu avô. Esse misto de curiosidade e admiração por sua pátria, por sua terra, pela sua cultura, por aquela bandeira vermelha e branca, com um cedro no meio”.

As primeiras impressões da cidade foram a de que o Líbano tinha algo de Brasil – pessoas extremamente amáveis e um calor de matar. Caos no trânsito, transporte público ineficiente, poluição. Encontrou uma parte de sua família que ficou por lá. Subiu o Monte Líbano e entendeu porque é tão famoso. Aos poucos, foi vendo que o país de Felipe era muito mais complexo. Lindo sim, mas cheio de problemas como qualquer outro de terceiro mundo. “Isso que é legal de ir como jornalista e de ter estudado ciências políticas lá. Você vê o país com outros olhos que não os de turista.”

Descobriu também uma Beirute cosmopolita, efervescente, cheia de opções culturais e uma noite vibrante. “O novo cinema libanês, por exemplo, é sensacional. Pena que ninguém traz essas coisas para cá. Falta esse intercâmbio cultural entre Líbano e Brasil”, diz. “E vida noturna de Beirute também é muito boa, a cena underground, a música eletrônica, tem vários DJs interessantes.”

Durante os dois anos em que viveu lá, estudou a política do país não só nas carteiras da Notre Dame como no dia a dia, no desenrolar dos acontecimentos. Escutou a bomba que matou o ex-premiê Rafik Hariri em fevereiro de 2005, pois trabalhava perto de onde ocorreu a explosão. “Você não escuta apenas. Você sente dentro de você”, explica.

Fez fotos do funeral do empresário-político. Estudou o Hezbollah na faculdade e conheceu membros do grupo. Chegou a ouvir os discursos públicos do (Hassan) Nashallah, líder do Hezbollah. Foi aos poucos entendendo o país, sua política, sua cultura e sua gente.

Fernando trabalhou seis meses na ONU, onde fez grandes amigos estrangeiros como ele. “Tinhamos até um time de futebol que se chamava ‘os diplomatas’ porque era um monte de gente da ONU e de várias embaixadas. Tinha suíço, marroquino, tunisiano e só eu de brasileiro”, recorda. Na ONU, tinha aulas gratuitas de árabe – que ele confessa que até hoje não aprendeu a falar fluentemente. Trabalhou também como correspondente da BBC.

Além dos amigos libaneses e estrangeiros, fez três grandes amigos brasileiros que, como ele, têm origem libanesa. Durante o conflito contra Israel, em julho do ano passado, Fernando chegou a ajudar um deles. Estava de férias no Brasil e resolveu ligar para o amigo só para saber se ele estava bem. O colega atendeu o celular de dentro de um abrigo anti-aéreo, na cidade de Blat, sul do Líbano, onde estava com a família. Eles não conseguiam falar com o consulado brasileiro e não viam como escapar dali.

Fernando o colocou em contato com vários amigos jornalistas no Brasil. Assim, o amigo saiu na capa de vários jornais, chamando a atenção do Ministério de Relação Exteriores. “O governo tinha tirado um grupo de brasileiros, mas várias pessoas ainda estavam na mesma situação do meu amigo, sem conseguir contato com embaixada ou qualquer outro tipo de ajuda”. A história teve final feliz.

Também em Beirute Fernando conheceu sua namorada, a espanhola Amal, filha de sírio, que morou no Iraque quando pequena. “Ela sim fala árabe fluentemente”, diz Fernando. Após dois anos em Beirute, Fernando foi para a Espanha com Amal, onde passou mais um ano. Em Beirute, deixou inacabada sua tese de mestrado. O tema era a representação política da colônia libanesa no Brasil. Na Espanha, seu tema mudou para os imigrantes latino-americanos em Madri.

Hoje, de volta ao Brasil, trabalhando em uma rede de TV no interior do Rio de Janeiro, lembra da empreitada pelo Líbano com uma ponta de orgulho e certa saudade. E faz planos. “Se eu pudesse morar lá de novo, voltaria. Se eu tivesse um bom trabalho por lá. Ficou a sensação de que tenho um compromisso com aquele país. Como profissional, acho que falta uma cobertura jornalística mais adequada sobre o Líbano”, acredita. “E tenho um compromisso também como membro da colônia libanesa do Brasil”.

E, importante lembrar, um compromisso com avô Felipe, o ídolo de sua infância, “aquele super-herói inalcançável”, como ele mesmo descreve, que nunca chegou a rever sua terra natal.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O fenômeno islamista deve ser entendido antes de criticado

Primeiro foi na guerra entre Israel e Hezbollah. Agora foi na guerra em Gaza. Durante os dois períodos, notei algumas vezes um fenômeno que me chamou a atenção.

Nos muitos protestos e nas declarações de indignação pela desgraça do povo libanês e palestino, eu via uma grande crítica à postura belicista e beligerante de Israel e uma solidariedade aos povos oprimidos, mas quase sempre sob um ponto de vista apenas humanitário. Muitas vezes notei, tanto em políticos e pessoas públicas quanto em amigos ou conhecidos, uma certa resistência em apoiar a causa libanesa e palestina que levou ao conflito, no caso os movimentos islamistas Hezbollah e Hamas. Pelo contrário. Vi várias vezes aquele discurso de que se deve dar apoio ao povo mas acabar com essas instituições diabólicas. De que a culpa está no radicalismo religioso. Que a "religião é o ópio do povo".

O que eu acho o mais curioso disso tudo é como esse pensamento simplista acaba colocando os críticos no mesmo patamar dos criticados. Antes de chegar ao "religião é o ópio do povo", Karl Marx escreveu algumas linhas mais que podem clarificar nosso raciocínio.

"(...) A religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo."

Ao encarar o fenômeno islamista na região simplesmente como ruim ou malvado, os críticos ocidentais acabam, meio que sem querer, fazendo exatamente o mesmo que os criticados: analisando a situação apenas nos termos religiosos.

Porque se analisassem ou até mesmo conhecessem a peça inteira de Marx, veriam que o fenômeno religioso na região é apenas uma resposta de um povo oprimido pelo colonialismo e imperialismo que trouxe à região miséria e pobreza.

Em vez de impor nossas idéias ou crenças sobre os outros, nós antes deveríamos tentar entender em que os outros acreditam e porquê. Enquanto continuarmos não querendo aprender, continuaremos a criticar e debater sentimentos religiosos em vez de realmente estar apoiando um povo que precisa de ajuda na luta por paz, independência e justiça social e econômica.

E isso por pura ignorância, porque não conhecer o Islã ou apenas conhecer a imagem trazida para o ocidente do que supostamente seria o Islã, algo diferente demais da gente para querer ser compreendido ou estudado. Eu sinceramente nunca vi críticas à Martin Luther King por usar o evangelho para mobilizar os negros oprimidos nos EUA. Ou à resistência católica irlandesa contra o imperialismo da coroa britânica. Ou ao clero que lutou contra os golpes e ditaduras patrocinados pelos EUA na América Latina.

É praticamente inevitável que a religião esteja presente nesses momentos de sofrimento. E que ela acabe sendo misturada com a luta, seja ela armada, intelectual ou política. E durante todo o curso da humanidade, as histórias de colonização e libertação são sempre histórias de terras conquistadas e liberadas pelo uso da força. Da Argélia ao Vietman, de Cuba à África do Sul, do Congo à Palestina: nenhum poder colonizador renunciou ao seu domínio apenas por negociações, diálogos e diplomacia.

Mas o problema é que, desde o 11 de setembro, qualquer manifestação "oriental" de luta contra o colonialismo e imperialismo é classificada de "terrorismo". Uma afirmação que não pode nem ser aberta a discussões e que se for contestada o contestador é visto como anti-cristo.

E num mundo onde querer aprender e entender é quase um crime, o diálogo fica cada vez mais difícil.