quarta-feira, 10 de abril de 2002

Geralmente quando vejo alguma matéria/texto/coisa interessante e/ou curiosa, eu coloco aqui um link indicando, mas dessa vez vou ter que fazer diferente. Há muito tempo não via uma crônica sobre o Rio de Janeiro tão bela quanto a de Elio Gaspari, em sua coluna de hoje no jornal O Globo. Comovente, verdadeira, bem escrita... enfim, não há adjetivo melhor do que "brilhante" para resumir o seu texto de hoje, que segue abaixo na íntegra. Honrando o que verdadeiramente é o espírito do Rio de Janeiro... a alma carioca, nua, crua e sem maquiagem, como o bairro que talvez tenha mais a sua cara, a Lapa.

A linda lição da Lapa
ELIO GASPARI

Todos os candidatos a presidente deveriam passar um dia inteiro no velho Centro do Rio. Primeiro percorreriam as barracas de camelôs da Cinelândia, do Largo da Carioca e das calçadas do caminho. Depois andariam pela Rua do Lavradio e pelo seu comércio de móveis velhos. À noite, sem escolta nem assessores, andariam pela velha Lapa. Não pelo largo iluminado dos Arcos, mas pelas ruas e becos. Pelo glorioso pedaço da Avenida Gomes Freire que vai da Mem de Sá à Riachuelo, um dos lugares mais feios do mundo e um dos pedaços mais verdadeiros do Brasil. Pela Rua Moraes e Vale, o das perplexidades de Manuel Bandeira. Aquele beco do qual, ao se despedir para nunca mais, entrou-lhe na cabeça um poema de “sete estrofes de sete versos de sete sílabas”.

Na Lapa de Madame Satã, Ismael Silva e do Boi (porteiro do falecido cabaré Novo México), o Rio de Janeiro dá uma lição ao Brasil. Lá há bares alegres, com jovens sem dinheiro e comida barata. Há até javali, no Capela. Não há carro blindado, seguranças nem pitboys. Na Lapa, o rei dos malandros já foi coroado há muito tempo. Era um otário. Um dos bairros mais decadentes do Rio recuperou-se e alegrou a cidade sem ter recebido uma só grande obra pública. Lá, a última interferência relevante do Estado foi concluída em 1724 e até hoje os Arcos estão lá. O povo fez o renascimento da Lapa.

Por falta de dinheiro, o poder público não conseguiu transformá-la num desses episódios restauradores que transformam qualquer coisa em cenário de novela de romance de Jorge Amado. O povo do bairro continuou lá, sem camisa, suado, bebendo na porta da lanchonete. Deu-se na Lapa o reencontro das duas cidades que convivem no Rio, a dos pobres e a daqueles que acham que não são pobres. Sempre que essas duas populações se encontram, o Rio floresce. Sempre que elas se separam, a cidade se degrada. Durante décadas, a mansão dos Fonseca Costa, amigos fiéis de d. Pedro II, conviveu com a favela do Pasmado. A utopia racista do andar de cima baniu a favela para Vila Kennedy, produziu um desastre, um mirante e uma grande vergonha para todos os americanos que financiaram o projeto, com dinheiro da Aliança para o Progresso.

Os candidatos a presidente deveriam passar um dia no velho Centro do Rio para usufruir a beleza do andar de baixo e a futilidade do andar de cima. Há mais vida na vizinhança do Instituto Médico-Legal do que em volta do Triângulo das Bermudas, onde a Petrobras, o BNDES e o falecido BNH comeram o patrimônio da Viúva.

Andando pelas ruas de jardins gradeados de todas as cidades brasileiras, sente-se a vulnerabilidade das fortificações. Está tudo arrumado de forma a evitar assaltos, mas teme-se que o assaltante chegue nos próximos cinco minutos. Na Lapa, vive-se a invulnerabilidade das ruas do povo. Os candidatos talvez fiquem com a impressão de que, a qualquer momento, alguma coisa de ruim lhes vai acontecer. Passa o tempo e não acontece nada. O bêbado está apenas bêbado. Há muitos anos, aquele sujeito com um copo de cerveja na mão era Osvaldo Nunes, a alma do bloco Bafo da Onça. Hoje, quem sabe, é o Zeca Pagodinho, genial intruso do samba na cultura de água com bolinhas.

Andando pela Rua dos Inválidos, percebe-se que Miami fica na Flórida. Não há shoppings na Lapa. Há lojinhas, botequins e supermercados caóticos. A visita ao Centro do Rio seria benéfica para os candidatos a presidente porque lhes mostraria que o Brasil segregado, além de chato e inviável, não é uma fatalidade social. É apenas um anacronismo do atraso fantasiado de moderno.
(ELIO GASPARI é colunista do GLOBO)

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