terça-feira, 31 de outubro de 2006

A ESPERANÇA AINDA ESTÁ VIVA

Por Mino Carta

Milagre não houve, Lula ganhou. Não ouso contestar outros milagres, alguns provocados mais pelos homens do que pelos espíritos transcendentes. Bons ou maus, os espíritos, depende dos pontos de vista.

Duas observações sobre a reeleição do presidente da República.

Primeira: as razões da reeleição. No meu entendimento. Queiram ou não os vetustos donos do poder, e independentemente da atuação do seu governo no primeiro mandato, Lula representa, desde 2002, uma mudança formidável. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e os conservadores em peso, e a mídia idem, empenharam-se em sustentar que na campanha Lula defendeu a divisão entre pobres e ricos, como se pretendesse precipitar a Tomada da Bastilha, enquanto a diferença se daria entre estados contemporâneos do mundo e os malfadados grotões.

Questões de lã caprina, aparentemente. Lula não é revolucionário, é óbvio. Algo muito mais profundo acontece, contudo, e supera de longe os desequilíbrios regionais para assumir, como é justo, a dimensão nacional. A separação entre os dois Brasis acentuou-se tragicamente, por obra de políticas econômicas que favorecem poucos e diminuem o País.

De um lado, a dita elite, primária e feroz, e os aspirantes à elite, aqueles que sonham freqüentar a Daslu e ter acesso aos carrões importados além das vitrines das fantasmagóricas lojas da avenida Europa em São Paulo. Do outro, remediados, pobres e miseráveis. Setenta, oitenta por cento da população. Sugiro uma visita turístico-sociológica à favela paulistana de Paraisópolis (Paraisópolis?), na concha de um vale, cercada por edifícios senhoriais instalados nas alturas, chamam-se paços, cortes, mansões, palácios. Está aí um dos mais perfeitos símbolos da fratura, vertiginosa.

Há quem suponha que basta erguer muralhas em torno de sua vivenda para se precaver em relação ao futuro. Os anúncios domingueiros de páginas duplas dos jornalões anunciam a construção de castelos, recintos fechados dos quais prorrompem espigões agudos enquanto no rés-do-chão abrem-se espaços encantadores para o esporte e o lazer, quadras, piscinas, saunas, playgrounds, prados de relva inglesa bem penteada. É a Idade Média, na versão afinada com a descoberta da válvula Hydra e do ar-condicionado. Ali, dentro da área privativa, a vida flui em alegria e o contato com o exterior se faz por helicóptero.

Cadê o povão? Ah, que saudade dos tempos da paciência, da resignação. Da cordialidade. Que surpresa, agora vota em Lula. Ele representa a ruptura e está na hora, a considerar seu desempenho do primeiro mandato, em relação ao qual CartaCapital tem muitas críticas, de que sinta toda a grandeza do seu papel.

Temos a tradição do voto de cabresto, mas a eleição de 2002, cujo resultado esta de 2006 confirma, a desfazem. O povo brasileiro fez sua escolha à revelia daqueles que desde sempre pretendem enganá-lo.

Em princípio, não há como esperar que o governo produza alterações abruptas de rota. Algo mais, porém, há de ser feito, além dos tímidos avanços dos últimos quatro anos. Para o Brasil tudo, para a elite a lei.

Segunda: o comportamento da mídia. CartaCapital orgulha-se de ter inaugurado um Dossiê da Mídia, a partir da publicação da série de reportagens assinadas por Raimundo Pereira e Antônio Carlos Queiroz, nas edições 415, 416 e na Extra da semana passada. Mesmo porque compreende que a maioria dos eleitores percebeu a manipulação, tentada mais uma vez por um jornalismo (jornalismo?) a serviço da minoria golpista.

A par da identificação com Lula por parte de quem se empolga ao ver o igual sentado no trono, há motivos para registrar a reação dos milhões de leitores, ouvintes, telespectadores, contra os meios de comunicação determinados a subjugar a opinião pública às suas conveniências.

A mídia foi eficaz na operação que levou ao segundo turno, com a contribuição decisiva do obscuro delegado Bruno. Mas quem deu um tiro no pé, como disse Lula, não foram apenas os trapalhões do PT. De verdade, a mídia foi muito mais aloprada, e o tiro foi de obus. Com sua manobra ofereceu ao presidente da República a chance de uma vitória mais retumbante do que aquela prevista pelas pesquisas no primeiro turno. E a reeleição também significa o fracasso do jornalismo movido a ódio de classe.

Cômico desfecho da trama desastrada. Esta revista, e os autores das reportagens sobre o Dossiê da Mídia, e o acima assinado, foram gravemente ofendidos por alguns mestres do jornalismo nativo, um dos piores do mundo do ponto de vista ético e técnico. Quem duvida, municie-se com um punhado de jornais e revistas estrangeiros credenciados entre os melhores, e compare.

Como de hábito, a tigrada julga por seu próprio metro. CartaCapital age, porém, em nome dos princípios que orientam o jornalismo autêntico e não se vende por razão alguma. Uma consulta a números divulgados há meses pela Folha de S.Paulo, mostra que a revista recebeu menos publicidade governista do que a Exame, quinzenal de business da Editora Abril. Se apoiamos Lula em lugar de Alckmin foi por razões claramente expostas, ao contrário de quem optou pelo tucano enquanto fingia neutralidade.

Neste momento, recomendamos ao presidente reeleito que leve em conta, ao encarar o futuro, a pesquisa da Vox Populi publicada nesta edição. O povo brasileiro, e até cidadãos que não o sufragaram nas urnas, como se depreende da análise dos próprios números, aposta nele, e aí está a extraordinária responsabilidade da sua tarefa. Porque as decepções colecionadas nestes últimos tempos não mataram a esperança.

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