Pelé, o gênio abençoado; Maradona, o amaldiçoado
Há um talento que o argentino possui num grau quase único: o de dar errado
"Mirai este retrato e mais este outro..." Hamlet, William Shakespeare. Faz mal ler. Cada linha sobre Diego Maradona traz um pequeno toque de desespero, uma pequena sugestão do desespero que mantém Maradona no abraço de um estrangulador. Não é só o contraste entre os dons gloriosos e a vida desastrosa que perturba tanto. É a sensação de inevitabilidade.
Maradona foi confinado numa camisa de força depois de um "ataque de fúria incontrolável". Amarrado à cama, gritava: "Não quero estar aqui." Onde? No hospital psiquiátrico em Buenos Aires? No planeta Terra? É sempre perturbador ver fotos de grandes atletas decadentes. Já é bem ruim vê-los envelhecer. Se dependesse de nós, ficariam jovens para sempre, conservados no âmbar da memória. É impudente e desnecessário para eles envelhecer e decair - quase como se fossem apenas criaturas humanas.
As atuais fotos de Maradona são quase insuportáveis. Não é a feiúra, mas a autodestruição por trás delas que é tão profundamente desconfortável. Parece que a cocaína e o desespero o estão matando ante nossos olhos. Jornais já publicaram tributos e quase obituários (uma perna esquerda divina, um garoto alquebrado e estufado, etc., etc.).
A decadência de toda figura pública traz um arrepio de culpa. Fomos nós, na platéia, que tornamos possíveis a fama, a grandeza, as façanhas; precisamos também arcar com a responsabilidade pelo declínio e pela queda. Adoramos fabricar heróis: estrelas, santos, modelos, pessoas perfeitas. O processo satisfaz uma necessidade profunda da humanidade, mas condena os heróis a viver fora do ordinário. Será o desespero de Maradona a conseqüência inevitável da fama? Parece que sim - para Maradona. Mas toda pergunta sobre Maradona traz outra pergunta sobre outro futebolista - de fato, seu gêmeo astral, oposto polar, irmão de sangue e antítese. Diego Armando Maradona, irmanado pelo destino a Edson Arantes do Nascimento. Conhecido como Pelé.
Em 2000, a Fifa teve de escolher o futebolista do século e, numa manobra memorável, a honra foi dividida entre Maradona e Pelé. Os dois não conseguem escapar um do outro: similaridades e diferenças os uniram pela eternidade.
Nasceram em famílias pobres. Maradona, o quinto de oito filhos de um operário; Pelé, às vezes, trabalhando como engraxate. Mostraram enorme talento assustadoramente jovens, treinaram para cumprir a promessa num grau fantasmagórico. Levavam a bola ao limite das leis da física e da biomecânica. Michel Platini, o grande jogador francês, disse de Maradona:
"As coisas que eu fazia com a bola, ele fazia com uma laranja."
Ambos sabiam marcar gols. Ambos possuíam equilíbrio extraordinário, velocidade e força para driblar e se afastar de um rival. Veneno e malícia em batalhas físicas. A qualidade quase mística do futebol chamada visão, o momento do passe, a corrida, o chute. Sabiam criar beleza.
Mas o maior talento de cada um era o de catalisador. Não apenas gênios, tornavam genial o time em que jogavam. Eram capazes de imprimir sua personalidade, ambição e visão à equipe toda. Para Pelé, o talento atingiu o ápice na Copa do Mundo de 1970. Para Maradona, também no México, numa Copa 16 anos depois. Como resultado, conquistaram a gratidão imortal da nação e a admiração do mundo, assustadoramente parecida a um culto.
Uma diferença entre eles é que Maradona nunca teve apelido. Um apelido pode ser algo poderoso. "Considero 'Pelé' uma dádiva de Deus", disse certa vez seu proprietário. "Edson é uma pessoa normal, que vai morrer um dia, e as pessoas se esquecem disso." Mas há um talento do qual Pelé carece totalmente e Maradona possui num grau quase único: o de dar errado. O de Pelé era o oposto.
Ambos tinham graça em campo. Um tinha uma graça que o acompanhou pela vida, mesmo em situações difíceis e traiçoeiras. O outro caminhou pela vida real com uma espetacular falta de graça, que traiu a incapacidade de entrar em acordo com a Terra, as criaturas humanas, a vida, o talento e a natureza.
Pelé jogou em quatro Copas do Mundo. Venceu três, mas jogou pouco na vitória de 1962 por causa de uma contusão. Maradona também jogou em quatro. Venceu uma e em outra foi à final. Em 82, foi expulso no último jogo da Argentina; em 94, foi mandado para casa depois de um antidoping positivo para uma mistura de drogas e suspenso por 15 meses.
Maradona transformou o Napoli - de novo, atuando como um conversor catalítico - e conquistou dois campeonatos e uma Copa da Uefa com o clube italiano. Mas deixou a Itália em 91, depois de antidoping positivo para cocaína e de sofrer seu primeiro banimento de 15 meses.
Outros itens incomuns em seu currículo incluem disparar contra jornalistas com uma espingarda de pressão e insultar o papa na televisão.
Maradona sempre teve uma afinidade com o desabonador. Marcou, talvez, os dois gols mais famosos da história da Copa do Mundo, ambos contra a Inglaterra, em 86. Sim, aquele, o "mão de Deus", que se seguiu ao slalom através da defesa inglesa. Este é sempre descrito como slalom, a palavra ideal para dar a impressão de uma qualidade escorregadia, de velocidade impetuosa e de precisão, os candidatos a defensores caídos desamparados nos rastros do destróier ladeira abaixo.
Brian Glanville, em seu definitivo A História da Copa do Mundo, cita um jornalista italiano: "A Inglaterra ainda estava em estado de choque, como um homem que acabara de ter a carteira roubada." Até o maior triunfo de Maradona tem algo de desabonador. Ele marcou dois gols na semifinal contra a Bélgica e, embora tenha tido uma final discreta contra a Alemanha Ocidental, fez o gol da vitória. Com Maradona, não se pode esquecer nunca o talento para o sublime, assim como não se pode esquecer nunca o dom de causar confusão.
Imagens, então, de um grande jogador no fim - ou perto do fim - da carreira na Copa do Mundo. Pelé, trocando a camisa com Bobby Moore, o capitão da Inglaterra - heróis do futebol, o respeito mútuo de dois homens seminus brilhantes e íntegros. E Maradona, numa corrida enlouquecida pelas drogas diante das câmeras em 1994. A vergonha assombraria Maradona mesmo depois de seus dias de jogador.
Pelé levaria uma vida de santificada respeitabilidade. Conseguiu até sobreviver a um escândalo financeiro e ao suposto roubo de quase meio milhão de libras esterlinas pertencentes à Unicef (processou seu sócio e fechou a companhia).
Há algo de infantil nos dois homens. Em Pelé, uma espécie de inocência gloriosa; em Maradona, uma recusa de assumir responsabilidade pelos próprios atos. Pelé se comporta como um homem especialmente abençoado; Maradona, como um homem que acredita ser singularmente perseguido.
Um sempre foi capaz de viver com dignidade; para o outro, a dignidade sempre foi algo estranho. Um se regalou com seus dons e a adulação que trouxeram; para o outro, o talento levou à autodestruição e ao desespero. Um é sinônimo de integridade, charme e prazer simples de viver; o outro, de complexo desgosto.
Por que tem de ser assim? É tentador alegar que os tempos mudaram. Vinte anos separam o nascimento dos dois. O esporte não foi um grande negócio para Pelé antes de ele se aposentar. Maradona sempre esteve cercado de pessoas desesperadas para chegar ao pote de mel. Mas Pelé tem ganhado dinheiro desde então - MasterCard, Coca-Cola, Nokia e, indiretamente (façam suas próprias piadinhas com embaixadas), Viagra - sem perder o amor e a boa-vida.
Maradona teria sido feliz se tivesse nascido em 1940? E Pelé? Infeliz se nascido em 1960? Duvido. Com Maradona, são as drogas que chamam a atenção, mas alguém não deixa de aceitar o mundo porque usa drogas. O contrário é que acontece.
Por que o gênio e a fama dariam a um homem uma vida de alegria e a outro uma vida de desespero? Dois homens, similares na habilidade e no amor que receberam ao longo de suas vidas. Um, abençoado; outro, amaldiçoado.
(Simon Barnes, colunista do The Times)
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