segunda-feira, 12 de março de 2001

Como é bom ver aquele senhor de capuz e cachimbo nas manchetes de todos os jornais do mundo... Me lembro perfeitamente do dia em que meu amigo Fernando Hernandez, de Puebla (+ ou - 80 km da Capital Federal), antes de embarcar de volta para o México, em julho de 1998, me presenteou com a camisa que estou usando agora. Antes o subcomandante Marcos era apenas uma lenda, um ídolo sem rosto... e naquele momento estava eu visualizando seus olhos e sua assinatura. Na parte de tras da camisa, uma carta repudiando um acordo proposto pelo governo do México que oferecia a liberdade dos presos políticos se o subcomante viesse a público pedindo "perdão" pelos seus atos... "YA BASTA!". Isso só aumentou mais minha paixão pelo movimento e pela América Latina! Hoje o mundo conhece e reconhece a luta do nosso povo latino pela liberdade! A figura do subcomandante Marcos é apenas um símbolo das mais de 100 mil pessoas que o receberam na praça do Zócalo, depois dos 15 dias e 3 mil km da Marcha pela dignidade indígena.

"DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!" já dizia Marcos. Agora esse sonho está cada vez mais próximo da realidade.

Galeria de fotos / Jornal do Brasil / O Globo / Estadão

Para entender um pouco do Exército Zapatista de Libertação Nacional e da figura do subcomandante insurgente Marcos, abaixo segue a carta que ele enviou ao recém empossado presidente Fox, em dezembro do ano passado. As reividicações do EZLN não são muito diferentes das nossas queixas contra os governantes brasileiros. Essa carta é um exemplo de cidadania e amor a pátria!

"EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.

MÉXICO.

02 de dezembro de 2000.

Ao senhor Vicente Fox
Los Pinos, México, D. F.

Senhor Fox:

Seis anos atrás escrevemos uma carta a Ernesto Zedillo Ponce de León, seu predecessor. Agora que você é o novo titular do Executivo federal, é meu dever informá-lo que a partir de hoje você herdou uma guerra no sudeste mexicano; a que o Exército Zapatista de Libertação Nacional declarou ao governo federal no dia 1º de janeiro de 1994 para reivindicar democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos.

Desde o início do nosso levante, enfrentamos as tropas federais conforme a honra militar e as leis da guerra. Desde então, o Exército tem nos atacado sem nenhuma honra militar e violando os tratados internacionais. Mais de 70 mil soldados federais (incluindo uns 20 mil das chamadas "tropas especiais de contra-insurreição") têm cercado e perseguido os zapatistas por 2 mil 525 dias (incluindo hoje). Durante dois mil desses dias têm feito isso violando a Lei para o Diálogo, a Negociação e a Paz Digna em Chiapas, aprovada pelo Congresso da União no dia 10 de março de 1995.

Ao longo destes quase sete anos de guerra, nós zapatistas resistimos e enfrentamos dois Executivos federais (autodenominados "presidentes"), dois Ministros da Defesa Nacional, seis Secretários de Governo, cinco enviados de "paz", cinco "governadores" de Chiapas e uma multidão de funcionários dos escalões intermediários. Todos eles já se foram. Alguns estão sendo investigados por suas ligações com o crime organizado, outros estão no exílio ou a caminho dele, outros ainda estão desempregados.

Mais de uma vez, durante estes quase sete anos, nós zapatistas temos insistido na via do diálogo. Fizemos isso porque temos um compromisso com a sociedade civil que exigiu de nós que calássemos as armas e tentássemos um acordo pacífico.

Agora que você assume a titularidade do Poder Executivo federal, deve saber que, além da guerra do sudeste mexicano, herda a possibilidade de escolher como irá enfrentá-la.

Durante a sua campanha e a partir do dia 2 de julho, você, senhor Fox, tem dito mais de uma vez que vai escolher o diálogo para enfrentar as nossas reivindicações. Zedillo disse a mesma coisa durante os meses que antecederam a sua posse e, todavia, dois meses depois da mesma, ordenou uma grande ofensiva militar contra nós.

Você deve entender porque a desconfiança em relação a tudo o que é governo, independentemente do partido político ao qual pertence, já tem marcado de forma indelével o nosso pensamento e o nosso caminhar.

Se à nossa compreensível desconfiança diante da palavra do poder acrescentamos o monte de contradições e leviandades que você e aqueles que o acompanham têm despejado sem visão alguma, é também meu dever assinalar-lhe que com nós zapatistas (e acredito que não só com os zapatistas) você parte do zero no que se refere à credibilidade e confiança.

Não podemos confiar em quem demonstrou superficialidade e ignorância ao apontar que as reivindicações indígenas se resolvem com "fusca, televisão e mercearia".

Não podemos dar crédito a quem pretende "esquecer" (isto é, "anistiar") as centenas de crimes cometidos pelos paramilitares e seus patrões outorgando-lhe a impunidade.

Não nos inspira confiança quem, com a visão curta da lógica gerencial, tem como plano de governo o de transformar os indígenas em mini-micro-empresários ou em empregados do empresário dos seis anos deste mandato. No fim das contas, este plano nada mais é a não ser a tentativa de continuar com o etnocídio que, sob diferentes modalidades, o neoliberalismo leva adiante no México.

Por isso é bom que você saiba que nada disso irá prosperar em terras zapatistas. O seu programa "desapareça um indígena e se crie um empresário" não será permitido em nossas terras. Aqui, e sob muitos outros céus mexicanos, o ser indígena não tem a ver só com o sangue e a origem, mas também com uma visão da vida, da morte, da cultura, da terra, da história, do amanhã.

Os que tentaram nos aniquilar com as armas têm fracassado. Fracassarão os que tentam eliminar-nos transformando-nos em "empresários".

Repare que já tenho sublinhado que, com nós zapatistas, você parte do zero em credibilidade e confiança. Isso significa que, por enquanto, você não tem que recuperar nada de negativo (porque é justo assinalar que você não nos atacou). Então, você pode dar razão àqueles que apostam que o seu governo irá repetir o pesadelo do PRI para todos os mexicanos, especialmente para os zapatistas. Ou, partindo do zero, você pode começar a construir com os fatos o que todo governo precisa para o seu trabalho: a credibilidade e a confiança. A desmilitarização que você tem anunciado (ainda que com termos diferentes que variam entre "retirada total", "realocação" ou "rearranjo", que não são iguais, coisa que você, seus soldados e nós todos sabemos) é um início, insuficiente, mas necessário.

Não só em Chiapas, mas sobretudo em Chiapas, você pode dar razão àqueles que desejam o seu fracasso ou àqueles que lhe concedem o benefício da dúvida ou depositam plenamente em você isso que chamam de "esperança".

Senhor Fox: à diferença do seu predecessor Zedillo (que chegou ao poder pela via do homicídio e com o apoio desse monstro corrupto que é o sistema de partido de Estado), você chega ao executivo federal graças ao repúdio que o PRI cultivou com esmero entre a população. Você sabe disso muito bem, senhor Fox: você ganhou a eleição, mas não derrotou o PRI. Foram os cidadãos. E não só os que votaram contra o partido de Estado, como também os das gerações anteriores e atuais que, de uma forma ou de outra, resistiram e combateram a cultura do autoritarismo, da impunidade e do crime que construíram os governos priistas ao longo de 71 anos.

Ainda que tenha uma diferença radical quanto à forma pela qual você chega ao poder, o seu projeto político, social e econômico é o mesmo que nos fez sofrer ao longo dos últimos mandatos. Um projeto de país que significa a destruição do México enquanto nação e sua transformação numa loja de departamentos, algo assim como uma mega "mercearia" que vende serem humanos e recursos naturais aos preços ditados pelo mercado mundial. Os ocultos projetos de privatização do setor elétrico, do petróleo e da educação, e o IVA que você pretende impor aos remédios e aos alimentos, são apenas uma pequena parte do grande projeto de "reestruturação" que os neoliberais têm para os mexicanos.

Mas isso não é tudo. Com você contemplamos a volta de posições moralistas cujo marco são a intolerância e o autoritarismo. Não é por acaso que com os resultados do dia 2 de julho a direita confessional desatou uma ofensiva de perseguição e destruição. E isso tem atingido mulheres (violentadas ou não), jovens, artistas plásticos e dramaturgos, gays e lésbicas. Com os aposentados e pensionistas, os inválidos, os indígenas e uns 70 milhões de mexicanos pobres, estes grupos são chamados de "minorias". Estas "minorias", senhor Fox, não têm possibilidade de entrar no seu México.

Nós nos opomos a esta México e o faremos de forma radical. Pode ou não lhe deixar preocupado o fato de um grupo de mexicanos, indígenas em sua maioria, além do mais, não concorde com planos mercantis e com a beligerância da direita. Mas você não deve esquecer que se o PRI perdeu o poder é porque a maioria dos mexicanos se rebelou e conseguiu tirá-lo.

Esta rebelião não terminou.

Do dia 02 de julho até hoje, você e a sua equipe não têm feito outra coisa a não ser insistir no fato de que os cidadãos devem voltar ao conformismo e a imobilismo. Mas não será assim, o seu projeto neoliberal enfrentará a resistência de milhões.

Alguns membros do seu gabinete e próximos a ele dizem que o EZLN deve entender que o país mudou, que (para os zapatistas) não há outra saída a não ser aceitar isso, render-se, tirar o passamontanhas e fazer sua solicitação de crédito para abrir uma vendinha, comprar uma televisão e pagar as prestações de um carro popular.

Se enganam. Nós lutamos pela mudança, mas para nós "mudança" significa "democracia liberdade e justiça". A derrota do PRI era a condição necessária para que o país mudasse, mas não suficiente. Faltam muitas coisas, você e os poucos políticos que compõem o seu gabinete sabem disso. Faltam muitas coisas sim e, o que é mais importante, milhões de mexicanos e mexicanas sabem disso.

Faltam, por exemplo, os indígenas. Falta reconhecer na constituição os seus direitos e a sua cultura que, acredite, nada têm a ver com as ofertas de promoção empresarial. Falta desmilitarizar e desparamilitarizar as comunidades indígenas. Falta libertar os presos de consciência. Falta apresentar os desaparecidos políticos. Falta construir e defender a soberania nacional. Falta um programa econômico que satisfaça as necessidades dos mais pobres. Falta que as pessoas sejam cidadãs o tempo todo. Falta que os governantes prestem contas. Mas também falta a paz.

Senhor Fox: durante mais de seis anos, o seu predecessor, Zedillo, fingiu ter vontade de dialogar e nos fez a guerra. Escolheu o enfrentamento e perdeu. Agora você tem a oportunidade de escolher.

Se escolhe a via do diálogo sincero, sério e respeitoso, apenas demonstre a sua disposição com os fatos. Tenha certeza de que terá uma resposta positiva por parte dos zapatistas. Assim, o diálogo poderá ser retomado e, logo, a paz verdadeira começará a ser construída.

No comunicado público que lhe anexamos, o EZLN dá a conhecer uma série de sinais mínimos por parte do executivo federal. Se estes se realizarem estará tudo pronto para voltar ao diálogo.

O que estará em jogo não é se nós nos opomos ao que você representa e ao que você significa para o nosso país. Quanto a isso não deve haver dúvida: nós somos seus contrários. O que estará em jogo é se esta oposição se dá por canais civis e pacíficos, ou se devemos continuar insurretos, com as armas na mão e com o nosso rosto coberto até conseguir o que buscamos e que não é outra coisa, senhor Fox, a não ser democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos.

Valeu. Saúde e esteja certo isso de que no México e em Chiapas terá um novo amanhecer.

Das montanhas do Sudeste Mexicano

Subcomandante Insurgente Marcos

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional."

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